domingo, 17 de novembro de 2013

A TOCA DE DONA LILIAN

ELA TINHA UMA CASA DE CAMPO. TRANSFORMOU-A NUM CENTRO DE ATENDIMENTO DE QUALIDADE PARA PORTADORES DE ALZHEIMER
17/11/2013 - Esquecer a panela no fogo, pedir para almoçar logo após o almoço, colocar o sapato na geladeira, pagar a mesma conta duas vezes, ou não pagá-la, e vestir roupas do avesso são alguns dos comportamentos que Lilian Alicke conhece bem – e sabe melhor ainda como lidar com eles. Quando os idosos perdem o poder de gerir a própria vida, lá está a Dona Lilian, 79 anos, com sua Toca das Horttênsias, uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que fundou em 1993 para auxiliá-los. Nestes 20 anos, a Toca de Lilian atendeu cerca de 70 idosos, a grande maioria portadora do mal de Alzheimer. “É uma luta diária. Disseminar o conhecimento sobre a doença é uma batalha no mundo inteiro, uma causa que abracei e transformei em propósito de vida”, diz Lilian.

A história começa na casa de campo de Lilian, construída num espaço de 3 mil metros quadrados nas proximidades da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Era ali que, durante anos, a família Alicke curtia os fins de semana. E foi ali, naquele início dos 90, que a proprietária decidiu levar adiante o seu propósito de vida, adaptando os cômodos para atender idosos que necessitavam de cuidados e companhia. Até então, os pouquíssimos centros desse tipo que funcionavam em São Paulo não ofereciam, segundo Lilian, um serviço de qualidade – tudo era feito na base do improviso, por profissionais despreparados para a tarefa. Lilian treinou pessoas, comprou camas, aparelhou a cozinha (de modo a realizar mais refeições), fez os providenciais ajustes de segurança nos banheiros. Com as mudanças, foi possível iniciar as atividades dentro da Toca, que começou como uma empresa tradicional, uma S/C LTDA, e oferecia os serviços apenas durante o dia. Era um novo mundo que se abria para a administradora escolar aposentada, que já havia trabalhado como secretária executiva da diretoria da Nestlé e da Chrysler e gerido, por 25 anos, uma escola na Zona Sul de São Paulo – onde se aposentara, aos 62 anos de idade.
Nos dois primeiros anos, a Toca viveu o que é comum à maioria das empresas iniciantes: a falta de recursos para girar o negócio. O que entrava no caixa mal dava para pagar as despesas, que acabavam custeadas com o dinheiro da fundadora. Até que a fonte secou. A alternativa, óbvia, era aumentar o preço, mas isso ia de encontro à filosofia de Lilian. “Para continuar, nós teríamos de cobrar mais e essa nunca foi a intenção. A ideia era atender idosos cujas famílias pudessem pagar, mas não um preço alto.” E as que pagavam, segundo a mesma filosofia, deveriam subsidiar aquelas impossibilitadas de arcar com os custos.

Em 1995, depois de se unir a outros integrantes e perceber que estava descapitalizada, Lilian decidiu transformar a Toca em uma associação sem fins lucrativos. Com o passar dos anos, as famílias sentiram a necessidade de deixar seus idosos na casa por mais tempo e o lugar, que antes prestava serviços apenas durante o dia, se converteu em residência.

Negócio reformulado, Lilian também estabeleceu o propósito da Toca. Para conseguir atender todas as famílias, os então responsáveis pelo projeto criaram uma espécie de bolsa, que varia de 30% a 70% do valor total cobrado, de R$ 3,5 mil mensais. O grupo também passou a realizar eventos e jantares para angariar mais fundos e, dessa forma, atender quem não podia pagar quase nada – dando, praticamente, um desconto integral. Nessa busca por recursos, a dona da Toca às vezes recebe ajudas inesperadas. “Um dia um chef de cozinha bateu aqui na porta da associação perguntando se a gente estava precisando de dinheiro, pois ele estava disposto a ajudar alguém. Fechei, ali, a melhor parceria da minha vida”, diz Lilian. O chef era Gunnar Carioba. Ele e seu filho Ted (também chef) são os responsáveis pela cozinha nos jantares escandinavos beneficentes da Toca. Realizados todos os anos, os encontros gastronômicos viraram marca registrada da casa de Lilian. A Toca ainda depende muito de eventos como esses para custear as despesas. Lilian também procura algum investidor fixo para complementar o orçamento.

Estudando o Alzheimer
Além de cuidar dos idosos, o local também se transformou em um centro de formação de cuidadores. São oferecidos cursos de 80 horas de duração para pessoas que queiram aprender mais sobre a doença e sobre os pacientes. Aprendida a teoria, os alunos são incentivados a fazer 40 horas de estágio dentro da própria Toca: só assim estarão aptos a exercer a função de cuidadores dos portadores de Alzheimer. “A intenção é disseminar o conhecimento, formar gente capaz de dar o tratamento adequado aos idosos. É preciso entender o que se passa na cabeça de alguém que percebeu que não manda mais na própria vida”, diz Lilian. Os fundadores da associação, claro, também sabem exatamente com o que estão lidando – todos já tiveram algum caso de Alzheimer na família. Menos Lilian.

A sua devoção aos idosos é fruto de um episódio de doença na família, mas de outra natureza. A mãe de Lilian sofria do mal de Parkinson. Quando entrou na fase avançada da doença, sua filha decidiu procurar um local que a acolhesse durante o dia, mas não encontrou nada que achasse apropriado – nem para os portadores de Parkinson e nem para os idosos relativamente sãos, aqueles que carregam apenas as limitações da idade. “Hoje, existem casas que cuidam bem dos idosos, mas em 1992 não. Desisti quando vi como as pessoas eram tratadas naquela época.”

Foi aí que Lilian decidiu empreender. A ideia inicial era montar um centro para idosos sãos. Lilian cercou-se de pessoas que entendiam do assunto e passou a visitar diversas casas de repouso. Também se matriculou na primeira turma da Universidade da Terceira Idade na PUC de São Paulo. Foi aí que encontrou uma professora que mudaria o destino da Toca, ainda um projeto embrionário. Depois de avaliar os planos de Lilian, a Professora Doutora Maria Auxiliadora Ferrari foi direto ao ponto: em sua opinião, aquilo que a futura dona da Toca estava planejando não ia dar em nada. Seria mais útil criar uma casa para atender portadores de uma doença que crescia no Brasil e cujos pacientes careciam de locais que oferecessem tratamento adequado: o Alzheimer. Lilian vivera bem de perto a experiência do Parkinson. Sonhara em montar um projeto para atender idosos em geral. E agora era incentivada a abrir a casa para uma nova causa: tratar das vítimas de uma doença da qual nunca tinha ouvido falar. Era a hora de aprender sobre ela.
Lilian debruçou-se sobre o tema. Leu diversos artigos, procurou a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), conheceu um dos melhores centros-dia dos Estados Unidos, na cidade de Durham e, já no papel de membro da Alzheimer’s Disease International (a associação voltada ao tema), participou de vários congressos na Europa. “Eu grudei na associação e a associação também me pegou. Como eu falo inglês, era usada como tradutora e intérprete. Depois de uns seis meses, eu tinha bem a ideia de como deveria ser um centro-dia aqui no Brasil. Foi nesse momento que resolvi abrir a Toca.” Dez anos depois, Lilian tornou-se presidente da ABRAz. Hoje, como consultora da entidade, lembra do trabalho que fez por lá: “Eram dez regionais no Brasil. Quando eu saí, deixei 22. Eram 60 grupos de apoio. Viraram 90. As 25 sub-regionais se transformaram em 60”. Lilian também participa da Comissão de Direitos dos Idosos da OAB.

O próximo passo da dona da Toca é aumentar a frequência de jantares e tentar encontrar novas formas para captar recursos. Assim, ela acredita, será possível ampliar a capacidade de atendimento da casa, hoje restrita a uma dezena de pacientes. “Podemos erguer um centro-dia e uma residência com condições de atender, ao todo, 36 pessoas”, diz. Essa é a meta. E o sonho, Lilian? “Ver um prédio onde o cidadão possa pedir qualquer tipo de informação ou ajuda. Seria um grande centro de atendimento a famílias, sobretudo as carentes. Nós até já demos o nome: Centro de Atendimento para o Idoso Fragilizado.” Seria a toca vertical de Lilian Alicke. Fonte: Globo G1. Aqui => Projeto Generosidade.

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