terça-feira, 30 de setembro de 2014

Qual desses embriões vai viver?

Pesquisador norte-americano causa polêmica ao sequenciar DNA do filho ainda no útero da mãe para verificar as chances do feto desenvolver 3 mil doenças no futuro. Essa informação pode levar a mais abortos e a uma seleção artificial dos bebês?

30/09/2014 - Desde que soube da gravidez da mulher, em 2013, Razib Khan, 37 anos, resolveu que mapearia o código genético do seu filho antes de ele vir ao mundo. Ao nascer, em junho, a criança transformou-se no primeiro norte-americano cujo DNA foi sequenciado na barriga da mãe e no primeiro caso de um mapeamento total de feto realizado sem nenhuma razão médica. “Não decodifiquei o DNA do meu filho para ver se ele tinha predisposição para doenças graves. Foi curiosidade”, disse Khan a GALILEU. Essa curiosidade, no entanto, abre uma discussão sobre um dos maiores tabus da genética: devemos saber, antes dos nossos filhos nascerem, quais doenças eles desenvolverão ao longo da vida?

A questão pode parecer tema de ficção científica (ela também é), mas ganhou força a partir do barateamento da análise completa do DNA — que foi dos US$ 3 bilhões do Projeto Genoma a pouco mais de US$ 1.000 hoje. Ao contrário dos testes genéticos comuns, os dados coletados por Khan vão além de identificar más-formações fetais, podendo prever uma série de males. Eles já permitiriam saber da suscetibilidade daquele feto a 3 mil doenças diferentes, como alguns tipos de câncer, deficiências mentais, doenças cardíacas, um tipo de Parkinson e infertilidade. Com o avanço da genética, novas possibilidades serão abertas. O que farão os pais ao saber que o feto na barriga da mãe pode ter a vida comprometida por uma doença grave daqui a várias décadas? A questão, mostram especialistas, já saiu da esfera das possibilidades da biotecnologia e invadiu a ética.

Não à toa, Khan encontrou obstáculos para sequenciar o feto — e acabou driblando os métodos tradicionais com uma espécie de “faça-você-mesmo”. Primeiro, pediu uma biópsia do vilocorial (CVS, na sigla em inglês), técnica que retira um fragmento da placenta da mãe (que carrega DNA do feto) durante o segundo trimestre de gravidez. O teste busca por cromossomos quebrados ou duplicados e é feito normalmente em pais com propensão a ter filhos com alterações genéticas — o que não era o caso. Procedimento invasivo, a CVS aumenta de 1% a 2% o risco de aborto espontâneo. Após a coleta, o material foi enviado ao laboratório SignatureGenomics, em Washington, que devolveu o resultado em dois dias: o garoto não tinha as doenças genéticas que fazem parte do teste.

Mas Khan não estava interessado nisso: ele queria os dados completos do DNA, o que foi negado pelo laboratório. “A parte mais difícil foi pedir os dados brutos, uma vez que os protocolos ainda não estão bem definidos”, afirma. Após brigar com a empresa e fornecer documentos com a assinatura da sua mulher e dos médicos, Khan conseguiu que a amostra usada no teste fosse entregue a ele. Este material foi então enviado a um colega da Universidade Davis, onde Khan faz doutorado em veterinária. O pai pediu ao amigo que decodificasse a amostra num dos sequenciadores da faculdade, geralmente usados para decifrar os genes de peixes e plantas. O último passo foi baixar um software online gratuito chamado Promethease, que produz relatórios a partir das informações dos genes. “Essa parte até que foi fácil. Afinal, tenho alguma experiência com biologia computacional.” No fim da jornada, o Promethease apenas confirmou o que Razib já sabia: seu filho ia nascer sem qualquer tipo de doença.

POLÊMICA
Razib Khan defende em seu blog, Gene Expression, que qualquer casal deveria ter acesso irrestrito a todas as informações genéticas dos seus fetos. “Pode ser útil. Há casos, como a espinha bífida (má-formação do tubo neural), em que é possível a intervenção cirúrgica em crianças que ainda estão no útero”, afirma Lenise Garcia, da Universidade de Brasília (UnB). “O problema é que, muitas vezes, não se visa o tratamento da criança e, sim, sua eliminação, por meio de um aborto”, conta. Khan confessa que chegou a pensar nessa hipótese. “Se fosse detectada qualquer anomalia genética, a gravidez teria sido interrompida”, diz ele.

A questão, no entanto, vai além de poder ser útil ou não. Alguns médicos criticam a ideia do sequenciamento total por representar uma concepção de saúde vinculada ao conceito de mercadoria. Para Cláudio Lorenzo, do Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB, a ideia interessa mais ao mercado do que à saúde pública. “Um cidadão não pode fazer uma ressonância magnética de corpo inteiro sem indicação médica, alegando o direito de saber como estão os seus órgãos. Da mesma forma, o escaneamento genético não deveria ser compreendido como um direito, uma vez que não é possível esclarecer para a população sobre a variedade de condições que podem ser encontradas, nem sobre o impacto que este conhecimento, fora de uma relação de assistência à saúde, pode trazer às suas vidas.”

Os testes genéticos mais simples, também feitos no Brasil, são indicados pelo médico quando há suspeita ou risco aumentado de anomalia genética. São casos como grávidas acima de 35 anos ou casais que já tiveram crianças com alterações cromossômicas.

Mesmo assim, a interrupção da gravidez por anomalia genética não é permitida — o aborto no Brasil só é possível em casos de estupro ou de anencefalia, a ausência do cérebro do feto. A informação do exame serve para preparar os pais psicologicamente ou para, em alguns casos, tentar tratar o feto antes mesmo do nascimento.

Quando se trata de um sequenciamento completo, no entanto, abre-se a possibilidade para no futuro identificar genes ligados a doenças incuráveis de início tardio, como Huntington e Alzheimer, que tendem a se manifestar depois dos 40 e 60 anos, respectivamente. “A decisão sobre essas doenças para as quais ainda não há tratamento preventivo e eficaz deve ser do próprio sujeito (ou seja, do bebê quando tornar-se adulto) e não de seus pais”, diz Lavínia Schuler-Faccini, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica. Outras doenças relacionadas com genes, como diabetes, hipertensão e esquizofrenia, indicam apenas uma predisposição e não um fato consumado. “O diagnóstico não oferece certeza de que o portador vai desenvolver a doença. Fatores ambientais, como estilo e hábitos de vida, contribuem”, afirma Cláudio Lorenzo, da UnB.

E SE FOR INSEMINAÇÃO?
A polêmica aumenta se pensarmos nos bebês concebidos por meio de fertilização in vitro. Mesmo que ainda não se ofereça o sequenciamento total, já existe o “diagnóstico pré-implantação”, em que se analisa uma série de características dos embriões. Problemas relacionados à genética, como anemia falciforme, distrofia muscular e fibrose cística, entre outros, podem ser detectados e levados em consideração na hora de escolher os embriões a serem implantados. Mas características mais prosaicas, como cor dos olhos, tipo de cabelo e sexo da criança, também podem ser identificadas nesses testes, o que é condenado por MayanaZatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP). A geneticista relata casos de pais surdos que desejam gerar um filho surdo ou de casais de anões que não querem um filho com estatura normal. “O argumento dos pais surdos é que a surdez não é um defeito, mas uma característica. Concordo que, às vezes, todos gostaríamos de ser surdos. Mas é ético impor essa condição aos filhos?”, diz Mayana, que reuniu alguns desses casos no livro Genética – Escolhas que Nossos Avós Não Faziam.

No Brasil, selecionar embriões ou fetos por características que não tenham relação com doenças genéticas é proibido pelo Conselho Federal de Medicina, explica José Gonçalves Franco Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida. Em Israel, se um casal tiver quatro filhos do mesmo sexo e quiser uma quinta criança, é permitido aos pais essa seleção antes de implantar o embrião. Já em países como Índia e China, valores culturais e religiosos levaram a uma preferência declarada por filhos homens, o que leva a muitos abortos seletivos, mesmo que ilegais. Em algumas regiões pobres da Índia, a proporção chega a ser de 130 homens para 100 mulheres. “Há muito tempo alerto sobre o risco dos bebês à la carte. Quando pudermos, tecnicamente, escolher outras características, é provável que isso seja feito sem maiores escrúpulos. Daí, a necessidade de impor limites éticos e legais que garantam não haver discriminação de cor, raça ou gênero”, afirma Lenise Garcia, da UnB.

O risco de os pais decidirem brincar de Deus e selecionarem as melhores características para os filhos remete ao filme Gattaca – Experiência Genética, de 1997. A obra narra a história de dois irmãos que cresceram numa sociedade futurista onde os bebês são geneticamente planejados. Enquanto o primeiro nasce pelo “método convencional”, o segundo é gerado através de fertilização in vitro, com um DNA controlado para evitar doenças. Ainda na sala de parto, um teste de DNA revela que o primogênito tem 99% de chances de desenvolver um problema cardíaco e morrer antes dos 30. Por esse motivo, ele se vê obrigado a burlar o sistema, que não permite a indivíduos “defeituosos” tornarem-se astronautas. “Não deveríamos tentar fazer seleção pré-natal de embriões, exceto em casos de doenças graves e incuráveis. Já imaginou se, por acaso, eliminássemos o embrião de Ludwig Van Beethoven por causa da surdez ou o de Vincent Van Gogh por causa da esquizofrenia?”, diz Sérgio Pena, diretor do Laboratório de Genômica Clínica da UFMG.

Para evitar que a vida imite a arte, os EUA aprovaram, em 2008, uma lei que proíbe a discriminação de indivíduos com base em informações genéticas. O Brasil ainda não possui legislação específica, mas especialistas indicam que precisamos criar mecanismos para evitar que, por exemplo, um diretor deixe de matricular alunos que tenham um gene relacionado à agressividade. Até porque uma criança com tal gene criada em um ambiente afetuoso pode não manifestar sua agressividade de forma indesejável. “Já conseguimos sequenciar facilmente um genoma inteiro, mas ainda não temos conhecimento suficiente para interpretar corretamente o que está escrito lá”, afirma Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da USP.

DNA EM PROMOÇÃO
Sequenciamento sem médico vendido por US$ 99 nos EUA é proibido

Até o ano passado, quando teve seu serviço suspenso pela agência que regula medicamentos nos EUA (FDA), a 23andMe cobrava US$ 99 por um teste de DNA.

A empresa não deu provas suficientes de que fornecia resultados confiáveis, principalmente quando se tratava de doenças causadas por mutações em mais de um gene. Comandada por Anne Wojcicki, ex-mulher do cofundador do Google, Sergey Brin, a 23andMe defende tese parecida com a de Khan: a de que os consumidores têm o direito à informação sobre seu próprio DNA. Feito por mais de 500 mil pessoas, o exame da companhia analisava o DNA de uma amostra de saliva e informava se elas têm risco de desenvolver doenças como os cânceres de ovário, de mama e de intestino, por exemplo. A FDA alegou que um falso positivo poderia levar uma consumidora a fazer uma mastectomia desnecessária. “Pense no efeito de saber que você tem propensão para uma doença grave, ou sem cura, e não poder fazer nada para evitá-la”, diz MayanaZatz. “É como uma bomba--relógio cujo prazo para explodir não pode ser previsto nem interrompido.” Fonte: Revista Galileu, com fotos e gráficos.

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